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 História e Alergia

Por: Raul Emrich Melo - Editora Via Lettera - também em: http://www.estantevirtual.com.br/

o livro história e alergia

 

Fog de Londres,
Asma e Exercício

 “Periferia de Londres, 1825.
- O que é isso? Minha mãe está morrendo?
- Não. Há muita gente na paróquia assim. É asma.
- O que eu posso fazer para melhorar? – implorou Lucy.
- Mais descanso. Menos preocupação – e deu um tapinha gentil na garota...”
(Londres, o Romance – Edward Rutherfurd).

 

Por mais charmoso que hoje possa parecer, o fog de Londres era, na verdade, a mistura de um nevoeiro natural com uma densa camada de fuligem que, de tempos em tempos, pairava sobre a cidade. Permanecia por alguns dias, até meses. Há séculos os ingleses já utilizavam um carvão barato como combustível – por ser pouco eficiente, produzia muita fumaça – mas o quadro se agravou com a revolução industrial. Pequenas indústrias, quase domésticas, proliferaram rapidamente pela cidade no século XIX e os pacientes asmáticos recebiam orientações minuciosas de emplastros, massagens ou cigarros - tão eficientes quanto o tapinha nas costas. Na primeira metade do século XX já existiam algumas drogas que permitiam o relaxamento da musculatura brônquica, mas não era o suficiente.

A idéia de que a poluição era um mal necessário perdurou até a chegada do “fog assassino”, em dezembro de 1952, quando apenas quatro dias de ar carregado foram suficientes para precipitar a morte de 4.000 londrinos. Este episódio provocou a mudança no comportamento em relação à poluição ambiental na Inglaterra. Alguns anos mais tarde, na década de 60, no campo da terapia para asma, a história realmente começou a mudar com o surgimento de relaxadores brônquicos mais específicos em aerossol – ou “bombinha” (chamados pelos médicos de beta-2 agonistas).

Mas a evolução espetacular e rápida para drogas, tão eficientes, teve seus reveses. Os broncodilatadores iniciais tiveram sua parcela de culpa, por seus nocivos efeitos no coração. Os “bronco-relaxadores” rápidos (os beta-2 agonistas de ação curta), por sua praticidade nas apresentações em aerossol, podem ter sido responsáveis pelo atraso na procura de atendimento médico, possivelmente contribuindo para o aumento da mortalidade em adultos e adolescentes.

Nós, médicos, esquecemos de esclarecer que essa classe de drogas não causa “dilatamento” dos brônquios, mas relaxamento. É possível sentir o suspiro de alívio de cada mãe e pai que tomam conhecimento de que a via aérea de seu filho não corre o risco de ficar permanentemente “dilatada”. Na verdade, ocorre o inverso. É possível que a inflamação persistente, sem tratamento adequado, deixe seu grau de sequela, ainda que imperceptível para a maioria dos pacientes.

Não só a terapia medicamentosa precisava mudar. Também os mitos e orientações equivocadas, tentando poupar o asmático de todo e qualquer estímulo, inclusive esportivo. Veja esta orientação de tratamento da asma, do compêndio de Anatomia e Fisiologia (1930), do Dr. Frederico Rossiter, que encontrei entre os livros de meu avô:

“Amplas fomentações sobre o peito e a espinha.... O ar do commodo em que dorme o paciente deve ser naturalmente secco... Um clima secco é o que mais convem ao asthmatico.”

É verdade que um cômodo úmido favorece a proliferação de fungos (ou “mofo”) e, por serem apetitosos alimentos de ácaros, acabam por piorar os sintomas de pessoas que vão para a casa de praia, por exemplo. No entanto, o ar seco é justamente um dos “inimigos” do asmático durante uma atividade física. Esta é a clara vantagem de um esporte como a natação. Por ser realizado em ambiente quente e úmido, provoca menos sintomas em asmáticos. Se Che Guevara fosse uma criança deste início de século, no entanto, não receberia mais a orientação de fazer natação para curar a asma ou evitar os sintomas decorrentes do exercício. Estaria livre para praticar o esporte que quisesse, contanto que seguisse um tratamento adequado da asma.

Quando vestimos um avental branco, corremos sempre o risco de nos envolvermos com informações técnicas, nos distanciando da realidade infantil. Criança não é um atleta profissional. Pela própria característica da criança, que se movimenta e se exercita continuamente, o uso de um remédio que só tem efeito por 3 a 4 horas não só não protege ao longo do dia como tem a desvantagem de criar dependência psicológica (“se eu vou correr, preciso usar algo”). Em alguns casos, quando a criança tem sintomas apenas com exercício, em um horário determinado (a escolinha de futebol da terça-feira, por exemplo) é preferível uma droga que seja usada em casa e produza uma cobertura prolongada.

De todo modo, é importante estimular o asmático para a atividade física. Sabe-se, por exemplo, que indivíduos asmáticos têm um condicionamento físico menor, com capacidades aeróbica e anaeróbica menores. Um círculo vicioso de menor atividade e sedentarismo relacionados à asma poderia ser a explicação para o fato. Além disso, talvez a falta de ar observada entre indivíduos asmáticos, mais intensa que em indivíduos normais, não seja unicamente resultado da falta de condicionamento físico ou da dificuldade do ar sai ou entrar nos pulmões; algumas substâncias que, em asmáticos, são liberadas em excesso durante o exercício, aumentam bastante o sintoma.

Se a dispnéia, ou seja, a sensação de falta de ar, é um frequente fator limitante, a tosse é praticamente onipresente. Nos estudos que realizamos na Escola Paulista de Medicina (UNIFESP), em que as crianças pedalavam intensamente a bicicleta ergométrica por 6 minutos, observamos que, no grupo que apresentou a crise de asma logo após o exercício, praticamente todos apresentavam tosse.

De qualquer maneira, há muitos anos os asmáticos têm mostrado que um tratamento adequado rende muitas medalhas olímpicas, em todas as modalidades. O problema é que o esporte de elite, com sua exigência cada vez mais elevada, pode estar produzindo lesão brônquica, não somente devido ao ar seco, mas provavelmente como consequência do ritmo respiratório aumentado em baixas temperaturas (o ar seco e frio acaba por agredir a frágil mucosa dos brônquios). Já existem estudos científicos mostrando que os atletas de ski cross-country desenvolvem, com mais facilidade, uma doença semelhante à asma.

Não bastassem os muitos diagnósticos possíveis, alguns sintomas não são evidentes (mal-estar, dor abdominal, desânimo), fazendo com que metade dos pacientes com asma induzida por exercício não sejam diagnosticados.

Por fim, uma orientação simples na prática clínica seria a de realizar aquecimentos curtos e repetidos, reduzindo a resposta ao exercício. Em aproximadamente metade dos asmáticos, a crise de asma não se repetirá com a mesma intensidade, se o exercício for repetido, nas mesmas condições, até 2 a 4 horas após.

Na Grande São Paulo, existe um fator agravante da asma que, apesar de não rivalizar com o fog londrino, é bastante poderoso: a poluição paulistana. Mas esse esforço em diagnosticar doenças e tornar melhor a vida dos nossos pacientes traz bons resultados. Voltar ao século XIX para curtir um fog? Não, obrigado.

 

Noite de Autógrafos
noite de autógrafos

Apresentação de Moacyr Scliar

"Medicina e literatura têm entre si uma mútua afinidade: ambas lidam com a condição humana, ambas valorizam a palavra, num caso como instrumento de diagnóstico e terapia, noutro como suporte para a criação estética. Isto explica o grande número de médicos-escritores: Anton Tchekhov, Arthur Schnitzler, Guimarães Rosa e Pedro Nava, para citar nomes mais conhecidos.

A esta tradição junta-se agora o doutor Raul Emrich Melo, com este belo e interessante “História e alergia”, uma coleção de ensaios que seguramente encantarão o leitor. E há motivos para isso.

Em primeiro lugar, a notável cultura do autor, uma cultura médica e também humanística. O dr. Raul não se restringe à sua especialidade, alergia, ainda que esta seja o tema principal da maioria dos textos; ele incursiona em vários campos do conhecimento, sempre trazendo informações tão interessantes quanto precisas e importantes.

Mais que isto, porém, o dr. Raul é um comunicador nato. O jargão médico é reconhecidamente difícil, sobretudo para a pessoa que com ele não está familiarizada. Mas o dr. Raul sabe, mediante o uso de uma linguagem que, sem deixar de ser elegante – é também coloquial – colocar ao alcance de qualquer leitor uma vasta gama de assuntos científicos. A atualidade destes é mais que evidente, a começar pela própria alergia, problema comum, que afeta, e aflige, milhões de pessoas. “História e alergia” é uma notável contribuição para a divulgação científica em nosso meio – e é também um livro de leitura agradável e fascinante."

Moacyr Scliar, médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras

 
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